terça-feira, 30 de outubro de 2012

PERGUNTAS SEM RESPOSTA

Se a esperança é a última que morre,
por que eu já desacredito de todos que me falam palavras boas,
afirmando que meu futuro é brilhante e que não dependo de ti pra ser feliz?
Se tu não me queres por perto,
por que finges que sou importante e que se interessa pelos meus livros,
perdendo tempo de semear para simplesmente me desnortear?
Se a vida é mesmo assim, injusta,
por que ainda desejo um afago verdadeiro,
muito mais do que uma massagem no ego que só permeia a área do conceitual?
Se a matéria é muito menos importante do que o abstrato,
por que ainda tento te encontrar em qualquer esquina,
e necessito tocar-te como um colecionador a uma peça rara?
Se o poeta finge escrever a dor que sente, por que minhas palavras me dão um certo alívio,
de maneira que até as portas que eu considerava solidamente trancadas se abram num piscar de olhos?
Se o destino está feito de maneira ímpar, impossível de modificar,
por que realmente acredito estar à mercê de um sentimento,
não sei se a saudade, a falta da presença ou o próprio afeto,
que pode me tornar assim, esperta e sincera,
a ponto de questionar tudo isso na tentativa de viver a felicidade?
Eis algumas de minhas perguntas.
Todas sem respostas.

outubro/2012

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

O HÓSPEDE

A saudade brilha em meu coração. Estou há uma semana longe de casa, hospedada em um belo e antigo hotel no centro de Buenos Aires. O hall de entrada é minha varanda particular: me divirto analisando funcionários e turistas. E ali o vejo pela primeira vez. É bem cedo, chove. Ele atravessa a porta giratória lentamente. Alto, magro, traz um buquê e uma caixa de bombons na mão direita. Debruça-se sobre o balcão, limpa o rosto com o lenço, como se isso afastasse o cansaço da noite mal dormida.

A recepcionista o cumprimenta com um mecânico bom dia. Ele responde que procura por Helena. “Ela deve ter avisado que eu chegaria hoje”. A atendente acena com a cabeça positivamente e lhe entrega a chave do quarto 22. Ele vai até a mesa de jornais e revistas, quer se informar antes do café. Eu o examino e, ao mesmo tempo, admiro aquele que é meu escritor favorito.

Penso em pedir um autógrafo, já que estou com um de seus livros nas mãos. Posso comentar algo a respeito da história, ou, quem sabe, puxar assunto sobre cachorro, li em uma revista que ele adora animais. Observo meu rosto no espelhinho que sempre carrego no bolso. Minhas rugas estão especialmente enormes esta manhã. “A gravidade, essa vadia sem coração”, penso. Quero ir até lá. Mas não. Fico paralisada, agarrada àquelas páginas, como se fossem o antigo testamento roubado do Vaticano.

Eu o estudo com visível desassossego, despertando a curiosidade de uma senhora no sofá ao lado. Nem me preocupo com a retaliação. Em outros tempos, disfarçaria o inconveniente, mas não naquela manhã. “Helena... é o nome da esposa!”, lembro-me de que todos os seus livros, todos, são dedicados a essa tal. “À Helena, minha fonte de inspiração”. “Ao meu amor, sempre Helena”. “Para Helena, que não deixou que eu morresse”: leio nas primeiras páginas que carrego. Essa lembrança desencadeia uma reação em mim que não será exagero classificar de terrível. Eu tento compreender como aquele homem é capaz de aguentar a sujeita, ofertar-lhe flores e chocolates, dedicar-lhe seus livros e amá-la...

Meus olhos viajam entre a figura do escritor, a capa do livro, a dedicatória, o nome de Helena. Me lembro porque gosto tanto desse autor. É como se aquele escritor, um exemplar raro, que eu não conheço e que ao mesmo tempo faz parte da minha vida de bibliotecas, livrarias e histórias, me tirasse para dançar sem eu nunca ter saído da poltrona.

outubro/2012 - oficina com Áurea Rampazzo

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

WANTED

Procura-se: você que roubou meu coração.
Invadiu-me e o levou sabe-se lá pra onde.
Por favor, devolva-me!
Não seja egoísta. Traga meu coração de volta e suma de uma vez.
Olha, eu já espalhei tua foto pela cidade inteira.
Em cima, a palavra "procurado".
Agora, todo mundo vai saber quem és, o que fez a mim.
E tem mais: não és apenas acusado de roubo.
És suspeito, também, de contravenção,
humilhação, latrocínio, cárcere privado,
transgressão de princípios,
infração de sentimentos.

agosto/2012

terça-feira, 16 de outubro de 2012

VIVENDO E ESCREVENDO

Plantei em mim uma coragem que nem eu sabia que conhecia.
Expresso-me agora, então, pelas letras.
Há coisas que nunca se poderão explicar por palavras ditas, é perigoso virar discurso, e isso eu não desejo: pessoas se reunindo à sombra de uma opinião como se fosse um guarda-chuva.
Gosto dos poemas e afins porque eu nunca fico sozinha no mundo, nem mesmo quando não sei pra que lado foi a vida.
Este é o meu "aqui".
Quando a saudade me estristece, escrevo.
Fico radiante, escrevo.
Sinto-me ignorada, escrevo.
Não encontro a porta de saída, escrevo.
Admiro passarinhos, escrevo.
Sou prolífica com as palavras.
Tudo é motivo para uma boa prosa se a alma é de verdade.

outubro/2012

POEMA DA RECIPROCIDADE

Canto uma canção de passarinho hoje: somente meus semelhantes me entenderão.

outubro/2012

terça-feira, 9 de outubro de 2012

O MONSTRO

Com uma só mordida, o monstro consegue tirar duas vidas.
Não perde a arrogância, nem quando é derrotado.
Sim, ele é cruel. Adora provocar lágrimas. São doces como as lembranças de alguém.
O monstro reina insuportável.
Ele dilacera a quem ama, tem prazer em ser mau.
Transforma o homem. Modifica a mulher.
Mente afirmando que ceder é fraquejar.
O monstro criou os óculos escuros.
Inventou o "ignorar a chamada".
Concebeu o status "invisível" e o comando "bloquear".
O aluno monstro aprendeu conjugar verbos assim: eu desdenho, tu desprezas, ele desapega. Nós desconsideramos, vós rejeitais, eles renunciam.
Ele abre a geladeira sem motivo, observa como se fosse uma TV.
Não admira artistas, nem se apaixona por poesias, tampouco compra cds ou filmes.
Considera o tempo de qualidade uma perda de tempo.
Sua alegria é ver o otimista sofrer o aguardo e, depois, a negativa.
Mantem o suspense do não.
Esse monstro, seu nome é Indiferença.

outubro/2012

MICROCONTO DA MULHER QUE QUERIA SE TORNAR UMA PLANTA

Vestiu-se de erva do campo, aguardando os beijos silvestres de seu amado, colhidos só para ela.

outubro/2012

DESÉRTICA

Cansei da monotonia da cidade grande.
Vou para o deserto onde não há celular nem TV a cabo.
Ficarei, assim, admirando o vai e vem da areia:
as montanhas de poeira que mudam daqui para acolá sem, contudo, precisarem de orientação.
Vou-me embora para Atacama. Não, para Negeb. Talvez para Kalahari.
O continente não importa.
Sempre haverá um oásis; os camelos estarão disponíveis; os tecidos de linho cumprirão a função contrária e eu adoro essa inversão de papeis.
Partirei agora mesmo. Pularei na minha ampulheta particular. Escorregarei por entre os grãos. Me fartarei na macia cama multicolorida. Ficarei assim, indo e voltando. Com o tempo.
Sem maldade cá dentro nem buracos abertos no chão pra me engolir.
Realidade é para os jornais, para a TV.
Na minha opinião, a realidade deveria ser mesmo proibida.

outubro/2012